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Quando o diagnóstico vira identidade: os riscos da medicalização da infância

  • Foto do escritor: Vinícius R. de Oliveira
    Vinícius R. de Oliveira
  • 24 de jun.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 23 de jul.

Por que cada vez mais crianças recebem diagnósticos como TDAH e TEA? E se o problema não estiver nas crianças, mas no sistema que as avalia?



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Imagine a seguinte cena: uma criança de 8 anos levanta a mão na sala de aula e pergunta: "Professora, para que eu preciso decorar a tabuada se posso usar a calculadora do celular?" Em vez de reconhecer a inteligência por trás dessa pergunta, muitas escolas hoje encaminhariam essa criança para uma avaliação neurológica. O diagnóstico? Possivelmente "déficit de atenção" ou "transtorno opositor".

Essa situação, que se repete milhares de vezes pelo Brasil, revela algo inquietante sobre nossa época: estamos medicalizando a curiosidade, a criatividade e até mesmo a inteligência crítica das crianças.


A Linguagem Sempre Incompleta

Para entender o que está acontecendo, precisamos primeiro compreender algo fundamental sobre nós, seres humanos: somos feitos de incompletude. A psicanálise nos ensina que nunca conseguimos dizer tudo sobre nós mesmos - sempre há algo que escapa às palavras, algo impossível de nomear completamente.

Essa "falta" não é um defeito, é nossa característica mais humana. É justamente porque não conseguimos nos definir totalmente que nascem a criatividade, o humor, a arte, e sim, até mesmo nossos sintomas. É da impossibilidade de dizer tudo sobre nós que emerge nossa singularidade.

Pense em quando você tenta explicar para alguém o que sente por uma pessoa querida. Por mais palavras que use, sempre parece que falta algo, não é? Essa "falta" é constitutiva de quem somos.


O Diagnóstico Como Resposta Mágica

Mas viver com essa incompletude é angustiante. É natural buscarmos explicações que nos tranquilizem, que nos digam quem somos de forma definitiva. E é aí que o diagnóstico médico pode se tornar problemático.

"Sou TDAH", "Sou TEA" - essas frases funcionam como identidades totais, como se o diagnóstico pudesse finalmente explicar tudo sobre a pessoa. É reconfortante ter uma resposta que parece científica e definitiva para nossas dificuldades.

O problema surge quando o diagnóstico passa de ferramenta de compreensão para identidade cristalizada. Quando uma criança de 7 anos se apresenta como "Oi, eu sou João e sou TDAH", algo se perdeu no caminho.


A Escola que Não Sabe Mais Educar

Vamos ser honestos: nossas escolas estão em crise. Salas superlotadas, currículos desatualizados, metodologias do século passado tentando educar crianças do século XXI. Em vez de reconhecer essas limitações, muitas instituições encontraram uma saída fácil: terceirizar o problema para o campo médico.

A criança que questiona vira "opositora". A que se move vira "hiperativa". A que tem ritmo diferente vira "deficitária". E o mais grave: a criança que faz perguntas inteligentes vira "problemática".


O Grito de Inteligência das Crianças

Quando uma criança pergunta "Para que serve isso?", ela está fazendo filosofia. Está questionando a relevância do que aprende, conectando conhecimento com vida real. É uma demonstração de inteligência crítica extraordinária.

A geração atual vive a maior revolução da informação da história humana. Elas sabem que podem acessar qualquer dado em segundos, que a inteligência artificial pode resolver cálculos complexos instantaneamente. Por que deveriam decorar capitais quando poderiam usar esse tempo para desenvolver pensamento crítico, criatividade, inteligência emocional?

Mas em vez de agradecer por essas perguntas fundamentais, o sistema as patologiza. A medicação serve para que parem de questionar, aceitem passivamente conteúdos sem sentido.


A Ilusão da Verdade Científica

O discurso médico contemporâneo promete objetividade total. Testes neuropsicológicos, questionários padronizados, escalas diagnósticas - tudo parece oferecer uma verdade sobre a criança que independe de interpretação. Mas será mesmo?

Todo conhecimento é construído por pessoas, em contextos específicos, com limitações. A neurociência é importantíssima, mas não pode ser a única forma de compreender a complexidade humana. Quando ela se apresenta como "fato científico" inquestionável, silencia a experiência subjetiva da criança.

É como se disséssemos: "Não importa o que você sente, pensa ou vive. O que importa é o que os testes dizem sobre você."


Os Riscos da Identidade Diagnóstica

Quando o diagnóstico vira identidade total, alguns riscos aparecem:

1. A responsabilidade desaparece: "Não posso me concentrar porque sou TDAH" pode virar uma forma de evitar se implicar nas próprias dificuldades.

2. O movimento para: O diagnóstico pode cristalizar problemas, tornando-os mais rígidos, impedindo mudanças.

3. A singularidade se perde: Cada criança é única, tem seu tempo, seu jeito. O diagnóstico pode apagar essas diferenças preciosas.


Uma Reflexão Necessária

Não estamos negando sofrimentos reais ou desqualificando a medicina. A questão é: como estamos usando o saber médico? Ele está ajudando as crianças a se compreenderem melhor ou as alienando de sua própria experiência?

O aumento exponencial de diagnósticos psiquiátricos na infância talvez revele menos sobre "patologias cerebrais" e mais sobre nossa dificuldade social em lidar com a diversidade humana.

E se as crianças estiverem certas? E se aquela que questiona "para que serve isso?" estiver sendo filosófica? Se a que se move em sala superlotada estiver sendo saudável? Se a que não se concentra em conteúdos desconectados estiver sendo inteligente?


Caminhos Possíveis

Para educadores: Que tal ver a pergunta "para que serve isso?" como uma oportunidade de diálogo, não como problema?

Para pais: Antes de aceitar um diagnóstico como verdade final, vale perguntar: "O que meu filho está tentando me dizer através dessas dificuldades?"

Para todos nós: Podemos questionar verdades cristalizadas e buscar formas mais humanas de educar, que acolham a diversidade sem precisar medicalizá-la.


A Verdadeira Questão

A pergunta central não é como adaptar as crianças a um sistema obsoleto, mas como criar condições que acolham a riqueza da diversidade humana.

O diagnóstico pode ser útil como ponto de partida para compreensão, mas torna-se perigoso quando vira ponto de chegada que encerra toda questão. Nossa incompletude constitutiva - aquilo que sempre escapa à nomeação completa - não é problema a ser resolvido, mas condição de possibilidade da criatividade humana.

Tentar tampá-la com diagnósticos totalizantes é empobrecer a riqueza da experiência de ser criança, de questionar, de crescer.

 

Talvez seja hora de escutarmos mais as crianças e questionarmos mais os sistemas. Talvez elas estejam nos ensinando algo importante sobre inteligência, criatividade e vida - se tivermos coragem de ouvir.

 
 
 

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2020. Vinícius R. de Oliveira

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