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Psicanálise com crianças: muito além do brincar

  • Foto do escritor: Vinícius R. de Oliveira
    Vinícius R. de Oliveira
  • 24 de jun.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 23 de jul.

Como a descoberta da sexualidade infantil por Freud revolucionou nossa compreensão sobre a mente das crianças - e por que a análise infantil é muito mais complexa do que parece



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Quando Freud descobriu que as crianças também têm vida sexual (não no sentido adulto, mas como energia psíquica fundamental), ele abriu uma porta que mudaria para sempre nossa compreensão sobre a infância. Mas como fazer psicanálise com uma criança de 5 anos que mal consegue ficar sentada por 5 minutos?

Esta pergunta gerou uma das maiores polêmicas da história da psicanálise - e suas respostas ainda ecoam nos consultórios hoje.


A Grande Briga: Klein vs Anna Freud

Imagine duas mulheres brilhantes, nos anos 1920, com visões completamente opostas sobre como trabalhar com crianças. De um lado, Anna Freud (filha de Sigmund), defendendo que era preciso primeiro "educar" a criança antes de analisá-la. Para ela, o analista deveria ser meio professor, meio terapeuta, preparando a criança para uma "análise de verdade".

Do outro lado, Melanie Klein, argumentando que isso era um absurdo. Para Klein, a criança deveria entrar direto em análise, sem rodeios pedagógicos. Sua arma secreta? O brincar como equivalente à fala livre do adulto.

Klein percebeu algo revolucionário: quando uma criança brinca, ela está "falando" através dos brinquedos. Cada jogo, cada história inventada, cada boneco que cai é material psicanalítico puro. Não precisava de preparação - a criança já estava pronta para a análise.


O Que Freud Realmente Pensava?

Curiosamente, o próprio Freud nunca atendeu diretamente uma criança. O famoso caso do pequeno Hans - um menino com fobia de cavalos - foi conduzido pelo próprio pai da criança, sob supervisão de Freud por cartas.

Mas Freud deixou pistas valiosas sobre como compreender a mente infantil:


O Complexo de Édipo: aquela fase em que a criança "compete" com um dos pais pelo amor do outro

O narcisismo infantil: o período em que a criança se vê como centro do universo

As neuroses infantis: conflitos psíquicos que já aparecem na infância


Para Freud, toda criança vive traumas estruturantes - não necessariamente eventos terrveis, mas encontros com a realidade que são impossíveis de processar completamente. Como resposta, a criança constrói fantasias originárias: histórias inconscientes que tentam dar sentido ao que não tem sentido.


A Revolução de Lacan: A Criança Como Sujeito

Jacques Lacan trouxe uma perspectiva revolucionária: na psicanálise com crianças, não é "outro" sujeito que está em questão. É o mesmo sujeito do inconsciente que encontramos nos adultos - dividido, sintomático, falante.

Isso significa que não precisamos de "técnicas especiais" para crianças. A regra fundamental continua a mesma: fale o que vier à cabeça (ou, no caso das crianças, brinque/desenhe o que vier à mente).


A Questão da Transferência

Mas há uma diferença crucial: a criança não pede análise para si mesma. São os pais que a trazem. Isso cria uma situação única: Os pais fazem uma "transferência imaginária" com o analista (confiam na figura, no nome, na reputação), mas a verdadeira transferência analítica precisa se estabelecer com a criança. O analista precisa navegar entre essas duas relações sem se perder.


As Entrevistas Preliminares: O Tempo do Reconhecimento

Lacan falava de um momento inicial chamado entrevistas preliminares - um tempo necessário para que a transferência se estabeleça. Não são "6 a 8 sessões" como dizem os manuais, mas um tempo lógico, não cronológico.

O analista sabe que a análise "começou de verdade" quando algo o surpreende - quando a criança produz um significante íntimo, algo único que pega o analista desprevenido. É o momento da tiquê - do encontro com o Real que é singular daquela criança.


Brincar, Desenhar: Arte ou Ciência?

O Equívoco das Interpretações Prontas

Melanie Klein, apesar de genial, caía numa armadilha: interpretava cada brinquedo como tendo um significado fixo. Carrinho = pênis, casinha = útero, trenzinho = símbolos sexuais. Essa rigidez transformava a análise numa aula de símbolos pré-definidos.

O problema? O significante é único para cada sujeito. O carrinho da Maria pode representar algo completamente diferente do carrinho do João. Interpretar com base em "dicionários simbólicos" mata a singularidade.


Anna Freud: O Brincar Como Secundário

Anna Freud via o brincar como menos importante que a formação do vínculo com o analista. Para ela, primeiro vinha a relação, depois as interpretações. Uma posição mais conservadora, mas que valorizava o aspecto relacional.


Winnicott: O Espaço Transicional

Donald Winnicott trouxe uma perspectiva diferente: o brinquedo como objeto transicional, representando um espaço entre a criança e a mãe. Um espaço onde a criança pode ser criativa, experimentar, se separar gradualmente da fusão materna.

Para Winnicott, brincar é fundamental - não para interpretar símbolos, mas para criar um espaço de experiência.


O Fort-Da: A Descoberta do Real

Freud observou seu neto brincando de jogar um carretel para longe e puxá-lo de volta, dizendo "fort" (foi embora) e "da" (voltou). À primeira vista, parece um jogo simples de controle sobre a ausência da mãe.

Mas Lacan viu algo mais profundo: o encontro com o Real da perda. A criança não apenas "domina" a ausência - ela se depara com algo da ordem da falta constitutiva. O carretel representa o objeto a, aquilo que falta estruturalmente e que movimenta o desejo.

Não é apenas um jogo onde a criança garante autonomia, mas demonstração da estrutura significante que lhe é imposta.


Na Prática: Como Funciona?

A Entrada em Análise

Como saber quando uma criança "entrou" realmente em análise? Quando ela sai da repetição do sintoma familiar e passa a questionar algo sobre seu próprio desejo. Quando produz algo que surpreende o analista.

Exemplos práticos:

Uma criança que insiste em colocar "capa" em todos os bonecos da massinha. Depois revela: "Para eles não adoecerem" (questão sobre proteção, vulnerabilidade)

Outra que desenha repetidamente monstros com garras: "Garras de caranguejo. São as mais poderosas, as mais difíceis de soltar" (questão sobre poder, agarrar)

São momentos de "que é isso?" - quando algo íntimo e singular emerge.


A Conquista do Respeito

Diferente do adulto que procura análise, a criança muitas vezes pensa: "Que é que eu tô fazendo nessa sala? Quem é esse cara?"

O analista precisa conquistar a confiança sem virar "tio", sem transformar o consultório em playground. É preciso suportar silêncios, resistências, desconfianças, sem cair na armadilha de querer agradar.


O Fundamental: Uma Clínica da Escuta

Será que ficamos presos demais em questões técnicas? Que material usar, que jogos escolher, se deve pedir para arrumar a sala no final? Todo esse "novelo" pode afastar o analista do que realmente importa.

A técnica psicanalítica é uma só, seja com crianças ou adultos: criar condições para que o sujeito fale (ou brinque, ou desenhe) livremente. E o analista exercita seu bem mais precioso: a escuta.


Reflexões Para Hoje

A psicanálise com crianças nos ensina que:


Crianças são sujeitos completos, não "adultos em miniatura"

O brincar é uma linguagem, mas não uma linguagem com dicionário pronto

A transferência é possível em qualquer idade, mas tem suas especificidades

O Real se apresenta desde cedo - crianças se deparam com questões existenciais profundas

A singularidade é fundamental - cada criança é única em sua forma de existir


Considerações Finais

Trabalhar psicanaliticamente com crianças não é aplicar "técnicas especiais" ou usar "materiais adequados". É reconhecer que ali há um sujeito do inconsciente, com sua lógica própria, seus sintomas, seus modos de gozo.

É estar atento aos momentos em que os três registros da linguagem (Real, Simbólico, Imaginário) se articulam de forma singular. É saber que a criança tem muito a ensinar sobre o humano - sobre desejo, falta, criatividade, resistência.

Talvez as crianças nos lembrem de algo que esquecemos: que a vida psíquica é mais rica e complexa do que nossos manuais conseguem capturar. E que escutar de verdade é a ferramenta mais sofisticada que temos.


A psicanálise com crianças nos convida a redescobrir o que é ser humano - com toda a beleza e complexidade que isso implica.

 
 
 

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2020. Vinícius R. de Oliveira

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